
A direita e muitos que se dizem de esquerda, impigem-nos-nos a toda a hora a cassete sobre as turbulências do chamado "verão quente" e de todo o periodo do PREC, provocadas, claro está, pela esquerda e sobretudo (poderia lá ser de outro modo?) pelos comunistas.
Tantas vezes o repetem que alguns até já acreditam que foi isso que aconteceu.
Ora a verdade é bem diversa. O verão quente quem o aqueceu, foi a direita reaccionária, revanchista e caceteira. Quem não se lembra do regime de terror imposto por tais arruaceiros (sobretudo em localidades fora dos grandes centros) aos militantes e simpatizantes comunistas, com assaltos, incêndios e depredações aos centros de Trabalho do PCP? Quem não se lembra das mocas de Rio Maior? Quem não se lembra dos mortos junto à sede da PIDE, no último estertor daquela famigerada corporação? Quem não se lembra dos atentados bombistas e do clima de intimidação por parte dos sinistros ELP e MDLP? É caso para se dizer "num lado se vende o vinho e noutro se põe o ramo ", ou como dizia minha Mãe, "chama-lhe, filho, antes que te chamem a ti".
A gente sabe como é.
Passam hoje precisamente 30 anos sobre o assassinato do Padre Maximino e da estudante Maria de Lurdes, num cobarde atentado à bomba, perpetrado por gente que nunca se conformou com as alterações que o 25 de Abril introduziu nas suas mordomias (estúpidos!, bastava ter calma que elas voltaria, como veio a acontecer) e, - da fama não se livra. - com a conivência de pessoas afectas à Igreja de Braga
Até hoje, ninguém pagou por esse crime. Aqueles que tanto prezam a vida e se esganiçam a bramir contra a interrupção voluntária da gravidez, nunca se preocuparam com a supressão da vida a estes dois membros da sua igreja, como encolhem os ombros aos milhares de mortos em que, ao longo de séculos foram assassinados em nome da religião que praticam e defendem.
Eu por mim, nada mais posso fazer, senão recordar aqui este crime, para que a memória não se perca e que, pelo menos, não julguem que nos comem por parvos.
Mas quem disso sabe melhor do que eu é o Padre Mário Oliveira
a quem passo a palavra
1. Foi já há 30 anos que os mataram à bomba, ao Pe. Maximino e à estudante Maria de Lurdes que vinha com ele das aulas que ambos davam à noite a trabalhadores na Cumieira, nas proximidades de Vila Real. Mas o crime continua aí em carne viva. E a clamar por justiça.
2. Não escutar semelhante clamor que se levanta do chão de Portugal e daqueles dois corpos jovens destroçados pela bomba é um outro crime não menos hediondo que o de há 30 anos. Ora, um país cuja História seja tecida de crimes e de sangue de vítimas inocentes que clamam, em vão, por justiça será sempre um país sem remissão, sem dignidade, sem humanidade, mais pesadelo do que comunhão. E tal tem sido o nosso país, apesar de Abril, um Portugal de pequeninos e de chico‑espertos a caminho da cauda da Europa, um país de consumidores compulsivos de novelas e de futebol e de Religiões, cada qual a mais esotérica e exploradora, um país de apostadores compulsivos nos jogos da santa casa (quando a casa mãe de todos os jogos a dinheiro é santa, porque não há-de ser santo, e santo subito, o fatimista papa João Paulo II, cujo longo pontificado não deixou pedra sobre pedra do promissor e revolucionário Concílio Vaticano II?)
3. O pior é que quando não nos atrevemos a ser e a viver como seres humanos, depressa ultrapassamos as bestas em inumanidade e em crueldade. Por mais que nos enfeitemos de beatos e de santos, e de outros títulos secularizados cheios de pompa e de circunstância. Aliás, os títulos só assentam bem em quem tem montes de inumanidade a esconder e mãos cheias de sangue a disfarçar. Aos seres humanos com espinha dorsal e frontalidade, os títulos só atrapalham e depressa ficam pelo caminho, com os seus portadores a ser excomungados e votados ao ostracismo. É assim: Ou somos irmãos e companheiros e comportamo-nos como tal todos os dias, ou constituímo-nos em inimigos dos demais. Quem não se faz próximo dos que sofrem e estão para aí votados ao ostracismo torna-se um aborto humano. Pode não matar, não roubar, nem destruir, mas dele não se poderá dizer que é um ser humano integral. Ser mulher, ser homem a valer é comprometer-se com os demais, até que todos sejamos gente. Não se trata de subir, de fazer carreira dentro do Sistema e desta Ordem Mundial intrinsecamente perversos. Trata-se de descer para se chegar a ser. Quando nos promovem e, assim, nos distanciam dos últimos e das vítimas, despromovem‑nos em humanidade. A melhor receita para fazer um canalha é promovê-lo a chefe do bando e atafulhá-lo de privilégios e outras benesses. Na Igreja, é fazer de um cristão bispo. Na Sociedade é fazer de um político ministro. Na empresa, é fazer de um trabalhador patrão. Com o passar dos dias, veremos diminuir o ser humano e desenvolver-se um monstro, cada vez mais distante e arrogante na sua relação com os da base e todo mesuras e salamaleque na sua relação com os do vértice da pirâmide que são também os donos de D. Dinheiro.
4. A menos que sejamos como o nosso querido Maximino mártir. Padre, mas com uma salutar prática quotidiana de anti-padre. Padre, mas com coração e braços e cabeça e mãos e pés e corpo de irmão e de companheiro. Escandalosamente próximo das pessoas da base e longe dos templos e dos altares. Sobretudo, longe dos privilégios que a batina e a estola sempre dão a quem se apresenta vestido/disfarçado com uma e com outra. Com ele, aprendemos que podemos assumir serviços, nunca privilégios. Os privilégios corrompem e acabam por fazer desaparecer o ser humano. Ou recusamos os privilégios que o Poder faz questão de conferir a quem exerce determinada função, ou tornamo‑nos progressivamente menos humanos. Por isso, quando não nos deixam recusar os privilégios inerentes à função, só nos resta recusar a função. Se a aceitamos, assinamos nesse instante, o nosso próprio processo de despromoção de ser humano, para nos tornarmos progressivamente um funcionário do Sistema e do Dinheiro mais ou menos subserviente.
5. Na sua rebeldia e juventude, o Padre Maximino nunca se deixou enrolar. O seu jeito de ser padre era o seu jeito de ser homem. Como um menino. Atrevido. Indomável. Alegre. Gaiato. Solidário. Desprendido. Pobre. Comprometido. Insubornável. Dissidente. No Sistema, mas sem ser do Sistema. No Sistema, mas para o fazer implodir, nunca para se aproveitar dele. Um padre‑para‑os‑demais. Para que os demais crescessem como pessoas, como seres humanos, em toda a sua originalidade e em toda a sua graça e verdade.
6. Não lhe perdoaram semelhante ser e viver. Tentaram domesticá-lo. Funcionalizá‑lo. Clericalizá‑lo. Em vão. Onde ele estivesse, estava o Sopro, o Vento, o Espírito. Ainda hoje, trinta anos depois, o seu nome continua a ser maldito. Como Jesus, o de Nazaré (não se iludam. O que hoje é por aí o mais bendito de todos os nomes não é Jesus o de Nazaré crucificado pelo Império e pelo Templo do seu país; é um Jesus light, habilmente reciclado pelo Império de Roma e pela Igreja católica romana que lhe sucedeu). Aliás, a morte violenta com que executaram o Pe. Maximino deixou bem claro urbi et orbi que padres assim nunca mais. A sua curta mas intensa vida histórica deveria ser bênção, exemplo a seguir, alfobre. E é maldição, vergonha, terreno maninho. Os bispos e a Igreja institucional tiveram e têm nojo dele. Nenhum deles apareceu a dar a cara no seu funeral. E hoje, trinta anos depois, continuam aí todos a ter vergonha de pronunciar o seu nome. É como se ele nunca tivesse existido.
7. E, no entanto, é de homens e de mulheres como o pe. Maximino que o nosso mundo precisa. Padres (e homens/mulheres) misseiros e funcionários do religioso, sempre tivemos que bastasse, séculos e séculos. E bispos também. E papas. Hoje, são menos em número, pelo menos os padres (ainda não há crise de vocações para bispo nem para papa!...), mas ainda são demais. Um só que seja e já é demais. Do que precisamos é de padres/presbíteros (homens/mulheres) que sejam seres humanos, irmãos e companheiros dos da base, pais com entranhas de mãe, com cabeça e mãos de parteira, que na relação com os demais ajudem a vir à luz o ser humano que anda em gestação em cada mulher, em cada homem que veio a este mundo. E que corre o risco de abortar e nunca chegar a vir à luz. Porque o Sistema da Alienação e da Mentira trabalha dia e noite, sem fins de semana e sem férias, para fazer abortar todos os que um dia nasceram neste mundo. O Sistema sabe que lá onde houver seres humanos a valer não há lugar para ele. Nem futuro! Por isso tudo faz para que nunca cheguem a ser seres humanos. Fiquem abortos, sempre.
8. Trinta anos depois do assassinato de Maria de Lurdes e do Pe. Maximino, a Igreja a que pertenço e a que eles pertenceram continua aí gritantemente calada. Envergonhada. Sem audácia para se rever no Pe. Maximino. Sem audácia para fazer dele o paradigma de padre/presbítero para o século XXI. Ainda em vida, atirou-o cruelmente para a valeta, quando foi por ele informada que iria fazer da Política (não do Poder!) a sua Intervenção e a sua Eucaristia. Em lugar de o apoiar e reforçar a comunhão fraterna com ele, abandonou-o às feras. Foi como dizer aos seus inimigos: podeis fazer com ele o que quiserdes, que nós não diremos uma palavra, nem esboçaremos um gesto. Ou, pior ainda: podeis cometer o hediondo crime de o matar pelas costas, à falsa fé, que nós jamais condenaremos esse crime. Pelo contrário, esse crime constituirá até um alívio. Para o país. E também para a Igreja institucional que nós, bispos católicos, somos.
9. O terreno ficou livre e a descoberto. E os inimigos do Pe. Maximino puderam avançar e matá-lo à vontade. Provavelmente, terão celebrado festivamente a sua morte. Pela calada. Numa liturgia inumana como eles. E com a bênção de algum cónego de nomeada e de algum bispo residencial. Não é verdade que também os sumos sacerdotes Anãs e Caifás, em Jerusalém, no tempo de Jesus, celebraram festivamente a sua morte violenta na cruz?
10. E agora? Trinta anos depois, tudo está consumado. Está? Não, não está! Tudo está apodrecido. Trinta anos depois, ele é corrupção por toda a banda. Ele é hipocrisia e mentira a jorros. Ele é Idolatria sem limites. O senhor D. Dinheiro não tem mãos a medir para atender tanta clientela. Como país, vamos a pique para o abismo, agora com Cavaco e Sócrates ao leme. Silenciaram os poetas e os profetas. Mataram o Debate. Nos seus medos da Liberdade e da Responsabilidade e na mais completa subserviência ao grande Capital (“Às suas ordens, meu Capital”, diz a manchete do último Fraternizar!), esta dupla de dirigentes sem entranhas de humanidade tem o condão de tornar as almas das portuguesas, dos portugueses ainda mais pequenas. Até quando? Até quando nós consentirmos. Soprasse todos os dias em nós o Vento/Espírito que um dia fez acontecer e viver o Pe. Maximino e este país seria outro. Mas o que hoje sopra forte por aí é o Vento/Sopro de D. Dinheiro. Quem se atreve a resistir-lhe e a ser e a viver pobre até ao fim dos seus dias? Quem se atreve a ser ateu deste deus cruel que se alimenta de gente? Por mim, aqui estou, pobre, longe dos templos e dos altares, amigo, irmão e companheiro, no jeito do Pe. Maximino. Contem comigo para as novas clandestinidades que urge voltar a viver e para as novas conspirações que urge voltar a iniciar. Na companhia de Jesus e de ateus. E do Pe. Maximino e de Maria de Lurdes e de todos os outros mortos ressuscitados. Cuidem‑se, porque os dias que vivemos são de chumbo. E é Inverno.
Pe. Mário Oliveira