ESTA È A QUALIDADE DE VIDA que nos oferecem
Em mais uma brilhante crónica que o DN hoje publica e com a devida vénia para o jornal e para o autor, aqui transcrevo, Baptista-Bastos traça um retrato mordaz mas muito realista do dia a dia dos portugueses. Da maioria dos portugueses. aqueles que vivem apenas do seu trabalho e não têm tempo para mais nada. Com pequenas diferenças para melhor ou para bem pior esta é a saga de quem tem de trabalhar para se sustentar a si e aos seus. Não há tempo para mais nada. Nem amor, nem afectos de qualquer ordem. Mas eu vou mais longe. Infelizmente este retrato não se aplica só aos portugueses. Esta é a "qualidade de vida " que o sistema, em qualquer parte do mundo e com pequenas nuances, proporciona àqueles que o ajudam a manter e a egordar, mercê do aluguer dos seus braços ou do seu intelecto. Que dizer então dos que nem trabalho têm e são milhões ?!
Qual o remédio?
Mudar o sistema. Não vejo outro.
PEQUENA CRÓNICA DO BANAL
Baptista-Bastos
"A vida pede pouco mais que vida." RUY BELO - Meditação Anciã
Os pa
is portugueses são os menos brincalhões da Europa: apenas 6% divertem--se com os filhos. Nenhuma interpretação semântica escapa a esta evidência. O sentimento de "pertença", corolário de um conceito de relação, e este como vector da ideia de cidadania, está a mirrar. O sistema aniquilou as redes de comunicação que permitiam a troca de valores e a difusão dos afectos. E está a dissolver o amor.
As dificuldades dos portugueses são crescentes, os direitos diminuem, os deveres e as obrigações aumentam. Os jovens casais são empurrados para as periferias. As rendas de casa são altíssimas; a compra de apartamentos insuportável pela subida inclemente dos juros; os salários não suportam as oscilações dos preços das coisas elementares. Na impossibilidade de possuírem dois automóveis, ou mesmo nenhum, um casal, habitando (habitar não é viver) no subúrbio é coagido a servir-se de transportes públicos desconfortáveis, cheios de fedores, de tristeza, de pobreza e de passado.
O cenário é aquela fronteira densa e excessiva, sem enigma nem segredo, que todos conhecemos. A mulher sai do emprego, corre às compras no supermercado, coloca-se, desanimada e democrática, na bicha do autocarro. O autocarro está pontualmente atrasado. As pessoas consultam os relógios de pulso. Começam as conversas, desencadeiam-se as lamúrias, cruzam-se os queixumes. As mulheres entram carregadas. Observam-se, formais e cristãs; atentas ao penteado, aos sapatos, às roupas da outra. O autocarro, já muito cheiroso, fica invadido de bafos.
Os homens enfiam-se no carro. Antes, haviam comprado o jornal "desportivo" de sua preferência. Cada um dos jornais "desportivos" cultiva, com discrição e reserva, uma tendência clubística, por todos conhecida. Os homens estão desejosos de chegar a casa. Até lá, hora, hora e meia de caminho: as bichas, os pequenos e grandes acidentes diários, as chuvas, os calores, o dia que escureceu mais cedo, o dia que se prolonga até mais tarde. Os homens consultam os relógios de pulso. Almejam chegar a tempo de assistir a um dos 122 programas sobre futebol que todas as televisões transmitem, com pedagógica alegria. Chegam, ligam os aparelhos, sentam-se.
A mulher apareceu finalmente. O homem ouve-a: está concentrado no que afirma um comentador. Nem olha para a mulher, a mulher dá-lhe um beijo rápido, rotineiro e indiferente. "Que é o jantar?", pergunta ele. Pergunta por perguntar. Os seus plurais interesses resumem-se a ouvir a palavra culta e eloquente daqueles sábios acerca do jogo que ainda se não realizou. Intervalo. "O menino?", pergunta o pai. "Ficou em casa da avó", diz a mãe.
"Ah!", responde ele.
________
Escritor e jornalista
b.bastos@netcabo.pt
Qual o remédio?
Mudar o sistema. Não vejo outro.
PEQUENA CRÓNICA DO BANAL
Baptista-Bastos
"A vida pede pouco mais que vida." RUY BELO - Meditação Anciã
Os pa

As dificuldades dos portugueses são crescentes, os direitos diminuem, os deveres e as obrigações aumentam. Os jovens casais são empurrados para as periferias. As rendas de casa são altíssimas; a compra de apartamentos insuportável pela subida inclemente dos juros; os salários não suportam as oscilações dos preços das coisas elementares. Na impossibilidade de possuírem dois automóveis, ou mesmo nenhum, um casal, habitando (habitar não é viver) no subúrbio é coagido a servir-se de transportes públicos desconfortáveis, cheios de fedores, de tristeza, de pobreza e de passado.
O cenário é aquela fronteira densa e excessiva, sem enigma nem segredo, que todos conhecemos. A mulher sai do emprego, corre às compras no supermercado, coloca-se, desanimada e democrática, na bicha do autocarro. O autocarro está pontualmente atrasado. As pessoas consultam os relógios de pulso. Começam as conversas, desencadeiam-se as lamúrias, cruzam-se os queixumes. As mulheres entram carregadas. Observam-se, formais e cristãs; atentas ao penteado, aos sapatos, às roupas da outra. O autocarro, já muito cheiroso, fica invadido de bafos.
Os homens enfiam-se no carro. Antes, haviam comprado o jornal "desportivo" de sua preferência. Cada um dos jornais "desportivos" cultiva, com discrição e reserva, uma tendência clubística, por todos conhecida. Os homens estão desejosos de chegar a casa. Até lá, hora, hora e meia de caminho: as bichas, os pequenos e grandes acidentes diários, as chuvas, os calores, o dia que escureceu mais cedo, o dia que se prolonga até mais tarde. Os homens consultam os relógios de pulso. Almejam chegar a tempo de assistir a um dos 122 programas sobre futebol que todas as televisões transmitem, com pedagógica alegria. Chegam, ligam os aparelhos, sentam-se.
A mulher apareceu finalmente. O homem ouve-a: está concentrado no que afirma um comentador. Nem olha para a mulher, a mulher dá-lhe um beijo rápido, rotineiro e indiferente. "Que é o jantar?", pergunta ele. Pergunta por perguntar. Os seus plurais interesses resumem-se a ouvir a palavra culta e eloquente daqueles sábios acerca do jogo que ainda se não realizou. Intervalo. "O menino?", pergunta o pai. "Ficou em casa da avó", diz a mãe.
"Ah!", responde ele.
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Escritor e jornalista
b.bastos@netcabo.pt
4 Comments:
Retrato trágico, a preto e branco, de muitas sociedades actuais.
Um abraço
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zé lérias (?), at 24 novembro, 2007 03:46
Portugal está a ficar para o trágico!!
Bom fim de semana!
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São, at 30 novembro, 2007 21:06
Infelizmente isto é uma verdade tão gritante que dói.. E já na cama, não há um afecto, um afago, um toque de pele..um amo-te ainda que encapotado... E quando a outra parte se vira para um beijo de até amanhã, dá por vezes o beijo no pijama ou na almofada..Assim caminha o mundo, sem tempo para olhar nos olhos dos que amamos, e quando as pessoas se suicidam, corre-se a acusar de loucura, nunca de desespero ou falta de amor.. E dói mas o mundo avança indiferente...
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Bichodeconta, at 06 dezembro, 2007 14:59
Baptista Bastos jornalista e escritor que muito aprecio. Foi com muito prazer que por aqui passei, caro António.
Jofre Alves
http://couramagazine.blogs.sapo.pt/
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Anónimo, at 07 dezembro, 2007 20:30
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