ENQUANTO E NAO

quarta-feira, novembro 21, 2007

ESTA È A QUALIDADE DE VIDA que nos oferecem

Em mais uma brilhante crónica que o DN hoje publica e com a devida vénia para o jornal e para o autor, aqui transcrevo, Baptista-Bastos traça um retrato mordaz mas muito realista do dia a dia dos portugueses. Da maioria dos portugueses. aqueles que vivem apenas do seu trabalho e não têm tempo para mais nada. Com pequenas diferenças para melhor ou para bem pior esta é a saga de quem tem de trabalhar para se sustentar a si e aos seus. Não há tempo para mais nada. Nem amor, nem afectos de qualquer ordem. Mas eu vou mais longe. Infelizmente este retrato não se aplica só aos portugueses. Esta é a "qualidade de vida " que o sistema, em qualquer parte do mundo e com pequenas nuances, proporciona àqueles que o ajudam a manter e a egordar, mercê do aluguer dos seus braços ou do seu intelecto. Que dizer então dos que nem trabalho têm e são milhões ?!
Qual o remédio?
Mudar o sistema. Não vejo outro.


PEQUENA CRÓNICA DO BANAL
Baptista-Bastos


"A vida pede pouco mais que vida."
RUY BELO - Meditação Anciã

Os pais portugueses são os menos brincalhões da Europa: apenas 6% divertem--se com os filhos. Nenhuma interpretação semântica escapa a esta evidência. O sentimento de "pertença", corolário de um conceito de relação, e este como vector da ideia de cidadania, está a mirrar. O sistema aniquilou as redes de comunicação que permitiam a troca de valores e a difusão dos afectos. E está a dissolver o amor.

As dificuldades dos portugueses são crescentes, os direitos diminuem, os deveres e as obrigações aumentam. Os jovens casais são empurrados para as periferias. As rendas de casa são altíssimas; a compra de apartamentos insuportável pela subida inclemente dos juros; os salários não suportam as oscilações dos preços das coisas elementares. Na impossibilidade de possuírem dois automóveis, ou mesmo nenhum, um casal, habitando (habitar não é viver) no subúrbio é coagido a servir-se de transportes públicos desconfortáveis, cheios de fedores, de tristeza, de pobreza e de passado.

O cenário é aquela fronteira densa e excessiva, sem enigma nem segredo, que todos conhecemos. A mulher sai do emprego, corre às compras no supermercado, coloca-se, desanimada e democrática, na bicha do autocarro. O autocarro está pontualmente atrasado. As pessoas consultam os relógios de pulso. Começam as conversas, desencadeiam-se as lamúrias, cruzam-se os queixumes. As mulheres entram carregadas. Observam-se, formais e cristãs; atentas ao penteado, aos sapatos, às roupas da outra. O autocarro, já muito cheiroso, fica invadido de bafos.

Os homens enfiam-se no carro. Antes, haviam comprado o jornal "desportivo" de sua preferência. Cada um dos jornais "desportivos" cultiva, com discrição e reserva, uma tendência clubística, por todos conhecida. Os homens estão desejosos de chegar a casa. Até lá, hora, hora e meia de caminho: as bichas, os pequenos e grandes acidentes diários, as chuvas, os calores, o dia que escureceu mais cedo, o dia que se prolonga até mais tarde. Os homens consultam os relógios de pulso. Almejam chegar a tempo de assistir a um dos 122 programas sobre futebol que todas as televisões transmitem, com pedagógica alegria. Chegam, ligam os aparelhos, sentam-se.

A mulher apareceu finalmente. O homem ouve-a: está concentrado no que afirma um comentador. Nem olha para a mulher, a mulher dá-lhe um beijo rápido, rotineiro e indiferente. "Que é o jantar?", pergunta ele. Pergunta por perguntar. Os seus plurais interesses resumem-se a ouvir a palavra culta e eloquente daqueles sábios acerca do jogo que ainda se não realizou. Intervalo. "O menino?", pergunta o pai. "Ficou em casa da avó", diz a mãe.

"Ah!", responde ele.

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Escritor e jornalista
b.bastos@netcabo.pt



4 Comments:

  • Retrato trágico, a preto e branco, de muitas sociedades actuais.
    Um abraço

    By Blogger zé lérias (?), at 24 novembro, 2007 03:46  

  • Portugal está a ficar para o trágico!!
    Bom fim de semana!

    By Blogger São, at 30 novembro, 2007 21:06  

  • Infelizmente isto é uma verdade tão gritante que dói.. E já na cama, não há um afecto, um afago, um toque de pele..um amo-te ainda que encapotado... E quando a outra parte se vira para um beijo de até amanhã, dá por vezes o beijo no pijama ou na almofada..Assim caminha o mundo, sem tempo para olhar nos olhos dos que amamos, e quando as pessoas se suicidam, corre-se a acusar de loucura, nunca de desespero ou falta de amor.. E dói mas o mundo avança indiferente...

    By Blogger Bichodeconta, at 06 dezembro, 2007 14:59  

  • Baptista Bastos jornalista e escritor que muito aprecio. Foi com muito prazer que por aqui passei, caro António.

    Jofre Alves
    http://couramagazine.blogs.sapo.pt/

    By Anonymous Anónimo, at 07 dezembro, 2007 20:30  

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