QUEM É JEAN ZIEGLER! Jean Ziegler, é Relator Especial das Nações Unidas para o Direito à Alimentação. É também professor de Sociologia na Universidade de Genebra. Por diversas vezes, foi deputado do Parlamento da Confederação Helvética (Suíça). Autor de alguns livros muito polémicos - em especial acerca da própria Suíça -, tem sido largamente publicado em Portugal: A Suíça Acima de Qualquer Suspeita (1976), A Suiça Lava Mais Branco (1990), Os Senhores do Crime (1999) e A Suíça, o Ouro e os Mortos (1997) - estes dois últimos também publicados pela Terramar.
Neste mundo dos nossos dias, em cada sete segundos, morre de fome uma criança de menos de 10 anos. E, na maior parte dos casos, isto acontece por ter sido vitima de um imperativo e de um só, o dos senhores do mundo: o lucro sem limites.
E quem são os novos senhores do mundo? São os senhores do capital financeiro globalizado. Mas, concretamente, quem são eles? No coração do mercado globalizado, há um predador: um banqueiro, um alto responsável de uma empresa transnacional, um operador do comércio mundial - que acumula dinheiro, que destrói o Estado, que desvasta a natureza e os seres humanos.
Este livro revela o seu rosto, analisa o seu discurso e denuncia os seus métodos. E há autênticos mercenários, tão fiéis quanto empenhados, ao serviço de tais predadores, até no seio da Organização Mundial do Comércio, do Banco Mundial e do FMI (Fundo Monetário Internacional).
Neste livro, Jean Ziegler segue a pista dos déspotas de tais instituições acima de qualquer dúvida, desmonta a ideologia que as inspira e lança uma luz implacável sobre o papel desempenhado, nos bastidores, pelo império americano. Todavia, um tanto por todo o lado, surge um movimento generalizado de resistência, para o qual convergem as esperanças de uma imensidão de contestatários espalhados pelo mundo. Estamos perante uma nova sociedade civil instituída à escala planetária. É de tudo isto que nos fala Jean Ziegler, nesta sua obra «empenhada politicamente», com a riqueza de informação a que nos habituou, oferecendo-nos um vasto painel em que surge toda uma diversidade de pessoas e de instituições que conhece de perto e de forma aprofundada.
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Aqui vai um passagem do prefácio para vos dar uma ideia do seu conteúdo
Neste início de milénio, as oligarquias capitalistas transcontinentais reinam no universo. A sua prática quotidiana e o seu discurso de legitimação são radicalmente contrários aos interesses da imensa maioria dos habitantes da Terra.
A globalização efectua a fusão progressiva e forçada das economias nacionais num mercado capitalista mundial e num ciberespaço unificado. Este processo provoca um formidável crescimento das forças produtivas. Riquezas imensas são criadas a todo o instante. O modo de produção e de acumulação capitalista dá provas de uma criatividade, de uma vitalidade e de um poder absolutamente espantosos e, certamente, admiráveis.
Em pouco menos que uma década, o produto mundial bruto duplicou, e o volume do comércio mundial foi multiplicado por três. Quanto ao consumo de energia, este duplica em média todos os quatro anos.
Pela primeira vez na história, a humanidade goza de uma abundância de bens. O Planeta desmorona se sob as riquezas. Os bens disponíveis ultrapassam em vários milhares de vezes as necessidades compreensíveis dos seres humanos.
Mas as valas comuns ganham também terreno.
Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse do subdesenvolvimento são a fome, a sede, as epidemias e a guerra. Elas destroem todos os anos mais homens, mulheres e crianças do que a carnificina da Segunda Guerra Mundial durante seis anos. Para os povos do Terceiro Mundo, a «Terceira Guerra Mundial» está em curso.
Todos os dias, no Planeta, cerca de 100 000 pessoas morrem de fome e das consequências imediatas da fome2. 826 milhões de pessoas estão, hoje em dia, crónica e gravemente sub alimentadas; 34 milhões delas vivem nos países economicamente desenvolvidos do Norte; o maior número, 515 milhões, vive na Ásia, onde representa 24 por cento da população total. Mas se considerarmos a proporção das vítimas, é a África Subsariana que paga o tributo mais pesado: 186 milhões de seres humanos vivem aí permanentemente mal alimentados, ou seja, 34 por cento da população total da região. A maior parte deles sofre daquilo a que a FAO chama «fome extrema», situando-se em média a ração diária nas 300 calorias abaixo do regime de sobrevivência em condições suportáveis. Os países mais gravemente atingidos pela fome extrema estão situados na África Subsariana (dezoito países), nas Caraíbas (Haiti) e na Ásia (Afeganistão, Bangladesh, Coreia do Norte e Mongólia).
Todos os sete segundos, na Terra, uma criança abaixo dos 10 anos morre de fome.
Uma criança com carência de alimentos adequados em quantidade suficiente, desde o nascimento até aos 5 anos, sofrerá as sequelas do facto para o resto da vida. Por meio de terapias delicadas praticadas sob vigilância médica, consegue-se fazer recuperar uma existência normal a um adulto que tenha estado temporariamente subalimentado. Mas a uma criança de menos de 5 anos, é impossível. Privadas de alimentação, as células cerebrais sofreram danos irreparáveis. Régis Debray chama a estas crianças «os crucificados à nascença3».
A fome e a má nutrição crónica constituem uma maldição hereditária: todos os anos, dezenas de milhões gravemente subalimentados dão à luz dezenas de milhões de crianças irremediavelmente atingidas. Todas essas mães subalimentadas, e que, no entanto, dão à luz, lembram as mulheres malditas de Samuel Beckett, que «parem a cavalo num túmulo... O dia brilha um instante, depois, novamente a noite4».
Há uma dimensão do sofrimento humano que está ausente desta descrição: a da angústia lancinante e intolerável que tortura todo o ser esfomeado, assim que acorda. De que modo, ao longo do dia que começa, vai ele poder assegurar a subsistência dos seus, alimentar-se ele próprio?
Viver nesta angústia é provavelmente mais terrível ainda do que sofrer das múltiplas doenças e dores físicas que afectam o corpo subalimentado.
A destruição de milhões de seres humanos pela fome efectua-se numa espécie de normalidade gelada, todos os dias, e num planeta a transbordar de riquezas.
No estádio alcançado pelos meios de produção agrícolas, a Terra poderia alimentar normalmente 12 mil milhões de seres humanos, ou seja, fornecer a cada indivíduo uma ração equivalente a 2700 calorias por dia5. Ora nós somos pouco mais do que uns 6 mil milhões de indivíduos sobre a Terra, e todos os anos 826 milhões sofrem de subali-mentação crónica e mutilante.
A equação é simples: quem tem dinheiro, come e vive. Quem não tem, sofre, torna-se inválido e morre.
A fome persistente e a subalimentação crónica são criadas pela mão do homem. São devidas à ordem assassina do mundo. Todo aquele que morre de fome é vítima de um assassínio.
Mas de 2 mil milhões de seres humanos vivem no que o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) chama a «miséria absoluta», sem rendimento fixo, sem trabalho regular, sem alojamento adequado, sem cuidados médicos, sem alimentos suficientes, sem acesso a água potável, sem escola.
Sobre estes biliões de pessoas, os senhores do capital mundializado exercem um direito de vida e de morte. Por meio das suas estratégias de investimento, das suas especulações monetárias, das alianças políticas que efectuam, decidem todos os dias quem tem direito a viver neste planeta e quem está condenado a morrer.
O aparelho de dominação e de exploração mundiais erigido pelas oligarquias desde o início dos anos 90 é marcado por um pragmatismo extremo. É fortemente segmentado e tem pouca coerência estrutural. E, consequentemente, é de uma complexidade extraordinária e contém inúmeras contradições internas. No seu interior, facções opostas lutam entre si. A concorrência mais feroz atravessa todo o sistema. Entre si, os senhores travam constantemente batalhas homéricas.
As suas armas são as fusões forçadas, as ofertas públicas de compra hostis, o estabelecimento de oligopólios, a destruição do adversáriopor meio do dumping ou das campanhas de calúnias ad hominem.
O assassínio é mais raro, mas os senhores não hesitam em recorrer a ele, se for necessário.
Mas assim que o sistema no seu todo, ou num dos seus segmentos essenciais, é ameaçado ou simplesmente contestado - como no caso da Cimeira do G-8 em Génova em Junho de 20001 ou do Fórum Social Mundial de Janeiro de 2002 em Porto Alegre -, os oligarcas e os seus mercenários constituem um bloco coeso. Movidos por uma vontade de poder, uma cupidez e uma embriaguez de comando sem limites, defendem então com unhas e dentes a privatização do mundo. Esta confere-lhes extravagantes privilégios, um sem-número de prebendas e de fortunas pessoais astronómicas.
Às destruições e aos sofrimentos infligidos aos povos pelas oligarquias do capital mundializado, do seu império militar e das suas organizações comerciais e financeiras mercenárias, vêm juntar-se as que provocam a corrupção e a prevaricação correntes em grande escala em muitos governos, nomeadamente do Terceiro Mundo. Porque a ordem mundial do capital financeiro não pode funcionar sem a activa cumplicidade e a corrupção dos governos instalados. Walter Hollenweg, teólogo famoso da Universidade de Zurique, resume perfeitamente a situação: «A cupidez obsessiva e sem limites dos nossos ricos, aliada à corrupção praticada pelas elites dos países ditos em vias de desenvolvimento, constitui uma gigantesca conspiração criminosa... No mundo inteiro e todos os dias se reproduz o massacre dos inocentes de Belém6».
Como definir o poder dos oligarcas? Qual é a sua estrutura? O alvo histórico? Quais são as suas estratégias? As suas tácticas?
Como é que os senhores do universo conseguem manter-se, quando a imortalidade que os guia e o cinismo que os inspira não deixam dúvidas a ninguém? Onde está o segredo da sua sedução e do seu poder?
Como é possível que num planeta abundantemente provido de riquezas, todos os anos, centenas de milhões de seres humanos sejam atirados para a miséria extrema, para a morte violenta, para o desespero?
A todas estas interrogações, o presente livro tenta dar resposta.
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São estes senhores do mundo, - o capitalismo sem rosto - que de uma forma que o mundo nunca antes conhecera, exigem a subserviência dos governos, a submissão dos sindicatos, a inoperância dos tribunais, a privatização de todas os serviços e de todos os bens da terra, a inexistência ou menorização dos serviços sociais, a precaridade de emprego, o aumento das horas de trabalho, a redução dos salários, a mobilidade das empresas para os locais do mundo onde a mão de obra seja mais barata, a liberdade de despedir os trabalhadores quando tal lhes convier, tudo em nome do lucro e do aumento incomensurável dos seus dividendos.
É isto também que o enigmático tratado da União Europeia de que Sócrates tanto se ufana de ter ajudado a cozinhar, visa nas suas entrelinhas.
Não podemos aderir a um cozinhado de que só os iluminados conhecem os ingredientes. Os seus defensores, se acham que é tão bom, têm de no-lo explicar tim-por-tintim. Se é que são capazes de o fazer.
O tratado tem de ser referendado. Tem de ser dicutido amplamente pelo povo português e pelos povos envolvidos antas de ser aprovado.