ENQUANTO E NAO

domingo, dezembro 31, 2006

AINDA O ENFORCAMENTO

Depois do que ontem aqui escrevi sobre o enforcamento /assassinato de Saddam, às ordens dos seus antigos sócios e protectores não resisto a transcrever (data vénia) o editorial do insuspeito Diário de Notícias de hoje que, de outra forma e no essencial, não anda muito longe daquilo que eu próprio escrevi

Pena medieval

António José Teixeira

Saddam Hussein foi enforcado segundo as melhores regras medievais. Amarrado por carrascos encapuzados, corda ao pescoço, foi só esperar até se ouvir quebrar o pescoço. O enforcamento consumou-se num antigo edifício dos serviços secretos de Saddam, a norte de Bagdad, um dos muitos locais onde o ditador mandou executar os seus oponentes. Barbárie com barbárie se pagou. Nem o dia da execução foi inocente. Ontem celebrava-se a Festa do Sacrifício, um feriado religioso particularmente importante para os xiitas.

Sabemos todos, e há muito, que Saddam era um ditador sanguinário, conhecido por requintes de crueldade. Sabemos que cometeu crimes contra a humanidade e oprimiu o seu povo. Sabemos que após a invasão do seu país foi deposto, capturado e julgado num processo irregular, marcado por interferências políticas e assassínios de advogados.

A justiça e os direitos humanos em nome dos quais se quis condenar Saddam foram aviltados com a pena capital. A forca é uma marca medieval, um retrocesso civilizacional que apenas coloca os "libertadores" do Iraque ao nível do tirano de Bagdad. O acrescento de civilização que seria a eliminação da pena de morte e da tortura frustrou--se uma vez mais. E dizer, como disse Bush, que a execução de Saddam é um marco importante no caminho do Iraque rumo à democracia é apenas mais uma barbaridade. Pior, só mesmo o cinismo de algumas diplomacias tão cheias de princípios como de compreensão pela "soberania" iraquiana...

Já se percebeu que nem o derrube de Saddam fez desabrochar qualquer democracia, nem a sua captura pacificou o mosaico étnico-religioso, nem agora o enforcamento reconciliará quem quer que seja. A anarquia vai perdurar durante muito tempo para gáudio de todo o tipo de fundamentalistas e terroristas. Está criado o mártir sunita, subitamente "ilibado" de muitos outros crimes do passado. Basta lembrar a invasão do Irão em 1980 e os massacres de curdos e iranianos com armas químicas. Nestes crimes houve cúmplices activos, que o armaram e apoiaram politicamente, os mesmos que ajudaram agora a enforcá-lo. Por isso se pode concluir, como ontem dizia Robert Fisk no Independent, que Saddam Hussein foi criado e destruído pela América. Dir-se-á, e com razão, que os americanos têm as costas largas para o melhor e o pior. A pena de morte é uma dessas nódoas negras que continuam a ensombrar os EUA. Confundir a forca com o caminho para a democracia ajuda apenas a perceber a irracionalidade do nosso tempo.

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Veja também
O MEU "AVÔ" GUERRA JUNQUEIRO
no meu outro blogue
Escritos Outonais

2 Comments:

  • Quando os presumiveis administradores da justiça e legalidade se colocam no mesmo patamar dos presumiveis incumpridores desses mesmos predicados que sentido tem uma balança com dois pratos?
    Abraço.

    By Blogger ROADRUNNER, at 06 janeiro, 2007 23:30  

  • O linchamento público de um ex-presidente, que apesar de ter sido um assassino monstruoso, não deixa de ser um ser humano, transformado num espectáculo nojento por aqueles que em tempo lhe beijaram os pés, só vai lançar para a fogueira achas que com o tempo se vão revelar inapagáveis. Não nos podemos esquecer da velha rivalidade sunita-xiita. Longe vão os tempos em que os americanos bailavam com os sunitas ao som da mesma música...
    Um grande abraço e parabéns pelo blog.

    By Blogger CORCUNDA, at 06 janeiro, 2007 23:40  

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