A Dona Efigénia
Lembram-se certamente da D. Efigénia. Era uma senhora muito velhinha, muito temente a Deus, muito serena, muito bondosa, muito caritativa, muito boa de contas, muito sábia no equilíbrio do deve e haver das suas economias. Muito casta, sobretudo. Nunca casou, nunca pecou, nem em obras nem em palavras nem em pensamentos sequer. Todo o objectivo da sua vida era a o merecimento de um lugarzinho no céu. Quando, em odor de santidade, expirou o último suspiro, logo o departamento de relações públicas do Paraíso se preparou para lhe fazer a jubilosa recepção que tão meritório comportamento justificava.
Lá estava o S. Pedro na plataforma de aterragem, cercado de anjinhos e querubins, debruçado a perscrutar o horizonte (é suposto, mas não provado que o Paraíso se situe num plano superior ao deste planeta que habitamos) quando um dos querubins, com a vista naturalmente mais apurada do que o multicentenário Pedro, gritou excitado: já ai vem, já vejo a Senhora Dona Efigénia emergindo de uma nuvem, lá em baixo, ena pá que mecha que ela traz. Quando o bom do S. Pedro, compreensivelmente mais lento de reacções, conseguiu finalmente lobrigar o vulto da virtuosa senhora, já ela estava quase, quase à beira da plataforma. A velocidade porém era tanta, tanta a força da virtude que a impulsionava, que o brioso porteiro do céu, exasperado, mas com a mesma presteza com que, por três vezes, negou o Mestre no Monte das Oliveiras, lhe gritou: Porra, D. Efigénia, por favor, faça qualquer coisa, diga um palavrão, diga merda ao menos, senão entra em órbita!
Ora esta estória faz-me lembrar um certo cavalheiro, que também há uns anos (pelo menos há dez) anda congeminando a melhor forma de organizar a vidinha com o objectivo único e obcecante de conquistar um lugarzinho num certo palácio que há para os lados de Belém (até o nome tem conotações bíblicas, estão ver), para o qual se acha preferencialmente predestinado. Tal como a dona Efigénia, ele é poupadinho, ele equilibra muito bem o deve e haver dos proventos obtidos na recolha das presumíveis farrobas e figues que terá no seu quintal de Boliqueime, ele não responde a provocações dos seus adversários, ele nunca se engana nem nunca tem dúvidas e no entanto mantém um ar modesto como se fora o mais ignaro, o mais indeciso, dos seus concidadãos, ele não lê os jornais (certamente para não ser contaminado pela deletéria influência da informação que eles veiculam) ele não conhece bem a história de Portugal nem a literatura portuguesa, ele não conhece os Lusíadas, porque deve considerar coisa inútil e quiçá perniciosa, ele só muito tarde, quando isso deixou de ser perigoso e passou a ser uma actividade lucrativa, começou a interessar-se por política, ele passou a sua a sua juventude como menino muito bem comportado, estudando para obter um “canudinho” (os outros que se lixassem e que lutassem e sofressem para criar as condições que lhe permitissem a ele gozar, mais tarde, já em democracia, das benesses que o bendito canudo lhe viria a proporcionar).. enfim, como dizem os franceses,il est un bon garçon, il aime beaucoup sa mère ...
Enfim tal como a D.Efigénia, ele é tão perfeito, tão virtuoso, tão sem pecado que, a menos que caia na tentação de proferir um qualquer palavrão, bem cabeludo, acaba por entrar em órbita, vendo passar ao lado a cadeira de Belém que tanto ambiciona
Eu, pela minha parte, vou-me pegar com todos os santinhos da minha devoção, a quem rezarei todos os dias, de manhã e à hora de deitar, para que o gajo solte cá para fora o palavrão redentor.
Ámen
1 Comments:
Espectacular! Então a história da Senhora velha...
LG
By Anónimo, at 27 novembro, 2005 17:31
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